a difícil arte de matar a sangue frio


Antônio mora no 23. Ao acordar esta manhã, arrumou seus intrumentos sobre a mesa da cozinha. Todos bem alinhados, da esquerda para a direita: primeiro a faca, comprida, ponteaguda, mas sem serras – fazem muita sujeira –; depois o martelo, de cabo curto para melhor empunhadura; o picador de gelo, pois havia assistido a um filme na qual o picador de gelo era utilizado; e por fim, uma Beretta Px4 Storm .45, que comprara num impulso incontrolável. Antônio às vezes era dado a impulsos. Este durou-lhe pouco, é verdade, pois ao entrar na loja o impulso virou ansiedade, e tão logo ter a ansiedade satisfeita, veio o arrependimento. Lembrou dos filmes noir do qual é fanático, onde os assassinos que usavam armas sempre eram apanhados, pois as nervuras que seus canos deixam nas balas funcionam como uma digital... são únicas!

Dona Matilde deve morrer, pensava Antônio. Às vezes tinha estes pensamentos à respeito de Dona Matilde, mas ultimamente eram tão frequentes que se tornaram uma obsessão. Dona Matilde realmente devia morrer. Deve haver outras pessoas que devem morrer, mas que outros cuidem delas; Antônio cuidaria de Dona Matilde, a viúva do 33. Dona Matilde deve morrer. Quase diariamente Antônio lia nos jornais notícias como “Adolescente mata avó para comprar cocaína”, “Estudante entra em sala de cinema e atira a esmo”, “Filha mata os pais para fugir com o namorado”, “Filho fuzila os pais enquanto dormiam, por confiscar seu videogame”, e outras atrocidades. Por isso Dona Matilde deveria morrer, e não porque ela batia sua toalha pela janela e salpicava a varanda de Antônio com migalhas, não porque tinha os passos pesados que chegavam a balançar o lustre da sala de Antônio, nem porque, sendo um pouco surda, ouvia o rádio e a TV em volumes estratosféricos, tampouco porque as pulgas de seus quinze gatos invadiam também o apartamento de Antônio, obrigando-o a uma detetização ao menos a cada quinze dias. Não por estas pequenas coisas, comum a todos que moram em apartamentos e têm que abrir mão, um pouco, de suas privacidades e individualidades, não... não por isso. Eram apenas ela e Antônio em todo o prédio de apartamentos. Três andares, quatro apartamentos por andar, e Dona Matilde tinha que morar justo em cima de Antônio. Dona Matilde deve morrer. Simplesmente porque assim estava escrito nas estrelas do céu da cabeça de Antônio.

Antes mesmo de se entregar à difícil tarefa de escolher o instrumento ideal para o ensejo, descartou a Beretta. Além da nervura da arma na bala, faria muito barulho, e embora o prédio fosse praticamente desocupado, havia ainda o porteiro, que aliás, era o mais inútil dos postos, pois nem Antônio tampouco Dona Matilde recebiam visitas havia anos. Restaram a faca, o martelo, e o picador de gelo. Antônio tentou criar uma imagem mental de como seria a empreitada com cada um dos instrumentos. Como já havia descartado a Beretta que estava à extrema direita, resolveu continuar a eliminação da direita para a esquerda.

O picador de gelo. Ao tentar metamorfosear a imagem de Dona Matilde ao picador de gelo, Antônio só pôde pensar nos olhos. Talvez devido ao formato do picador de gelo, fino e profundo, pareceu-lhe que dois golpes certeiros, um em cada olho, dariam conta do recado, mas em seguida pensou também que, não sendo os olhos – e tudo o que há por trás deles – necessariamente vitais, Dona Matilde agonizaria algumas horas, e talvez nem morresse, o que não era bom. Pior ainda se errasse o alvo, e ao invés dos olhos acertasse as bochechas, por exemplo. Definitivamente Antônio precisaria de golpes mais fatais. Assim pensou no coração. Visualizou o vasto o peito de Dona Matilde, e pensou que talvez o picador não fosse forte o bastante para romper-lhe a caixa toráxica, ou que não fosse suficientemente profundo para atravessar-lhe o coração, e descartou-o. Imediatamente após descartar o picador de gelo, descartou também a faca, por motivos semelhantes aos do picador de gelo. Restou o martelo. Ah, o martelo, símbolo da força, mas também símbolo da justiça, dos juízes e dos tribunais... também sentia-se Antônio um justiceiro. Antônio e seu martelo de cabeça de ferro, forte e pesado, de cabo curto para melhor empunhadura e melhor bater e quebrar.

Feita a escolha, Antônio retirou os outros instrumentos da mesa e passou a observar o martelo. Ao imaginar a cena com o martelo percebeu que o serviço seria um pouco mais sujo do que imaginara. Sujo porque exigiria o emprego de grande força, e pelas características do martelo de Antônio, a cabeça de Dona Matilde se esfacelaria, e pedaços de sua massa encefálica se espalhariam pelo chão, e quiçá em Antônio. Vestiria luvas e roupas apropriadas para o ensejo, impermeáveis, que pudessem ser descartadas depois. A idéia de ter pedaços de cérebro sobre si lhe causou certa náusea e, enjoado, vomitou-se ali mesmo, sem tempo de ir ao banheiro.

Recuperado, Antônio pôs-se a observar o martelo cuidadosamente colocado no centro da mesa. Uma única luz central o iluminava. Ouvia “La Mama Morta”, ária da célebre ópera “Andrea Chénier”, de Umberto Giordano. Gravação na voz de Maria Callas, que interpretava de maneira tão sublime que transbordava a alma de Antônio de pura poesia. Embora nunca houvesse matado ninguém, Antônio considerava-se um especialista. Lia romances, assistia filmes e acompanhava investigações e documentários forenses. Gabava-se muito disso, embora esse gabar fosse de si para si, diante do espelho. Antônio sabia que precisaria de um bom método para que as suspeitas não caíssem sobre ele, e embora motivos não houvessem, certamente ele seria interrogado.

Pensou em esperá-la na esquina, numa de suas caminhadas matinais, mas lembrou-se que mesmo àquela hora da manhã as ruas da redondeza já eram cheias de gentes ocupando-se de suas ocupações. Pensou também em surpreendê-la no elevador, mas havia o circuito fechado de TV. Finalmente concluiu que o melhor mesmo era invadir o apartamento de Dona Matilde e simular um assalto. Faltava agora planejar quando e como. Enquanto Maria Callas ainda se derretia em lirismo, interpretando "Maddalena de Coigny", tocou o interfone. Era Dona Matilde.

– “Boas noites seu Antônio, desculpe-me por incomodá-lo no seu descanso mas é que acabou-me o açúcar e estava eu cá a imaginar-me se teria o senhor um punhado a emprestar-me”.

Ah, Antônio também não suportava este sotaque português de Dona Matilde, mas isto, como as outras pequenas coisas, também não estava na lista de motivos pela qual Dona Matilde deveria morrer. Aliás, não havia lista de motivos. Dona Matilde simplesmente devia morrer.

– “Pois não Dona Matilde. Com muito prazer. Quanto lhe apeteceria. Uma xícara?”

– “Sim, uma chávena estará bem. Desço num minuto.”

– “Ora, não se incomode Dona Matilde. Subo eu.”

“Uma chávena”, pensou Antônio, mesmo depois de meio século morando no Brasil a velha não é capaz de dizer xícara... porque ela não pode dizer uma xícara?

Excitado pela surpresa e pela imediatez da ação que teria que tomar, camuflou o martelo na parte de trás das calças e tentou visualizar a cena: teria que entrar no apartamento... não poderia ser na porta. Pediria a xícara de volta, diria que só tinha aquela e precisava dela para o café da manhã. "Preciso para o pequeno-almoço", pensou, irônico.

Acertado o plano, pegou a xícara com o açúcar, subiu as escadas e checou o martelo com a mão direita antes de tocar a campainha.

– “Oi Antônio. Muito obrigada”

– “Eh...”

– “Entre um pouquinho, por favor. Fique à vontade. E por favor, feche a porta”

Antônio não hesitou. Nem teve que usar a desculpa da xícara. Entrou e virou-se para fechar a porta. Ao voltar-se para Dona Matilde, tentou com as mãos alcançar o martelo, mas Dona Matilde desfere-lhe um golpe de corte certeiro, meio centímetro de profundidade no pescoço, atingindo a carótida externa. As forças e a coordenação de Antônio, num mero minuto, começaram a se esvair... E os outros golpes que se sucederam, Antônio nem sentiu.

É, Dona Matilde também pensava nestas coisas...