meu amigo Nicanor

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Olhei pelo janelo... não havia ninguém. Esperei alguns minutos, imóvel, quase sem respirar, tentando ser o menos notável possível, na esperança que algum moleque voltasse para tocar a campainha novamente, mas foi em vão. Voltei para minha leitura de Milton:

"... And corporeal to incorporeal turn.
For know, whatever was created, needs
To be sustained and fed; of elements ..."

Gosto de ler em voz alta quando estou só. Há 20 anos leio em voz alta. Sempre só...

Ouço a campainha novamente! Tento me apressar, quase certo que não encontrarei ninguém do lado de fora, mas procuro me apressar mesmo assim, na esperança de ver alguém pelas costas, deixando a cena, mas não há nada. É certo que não sou muito rápido, a idade já não me permite, mesmo com o auxílio da bengala. E ao bem da verdade, por que haveria de ser alguém? A campainha não toca há anos! Mal me lembro do som que ela soa; as contas são passadas por debaixo da porta, nunca vejo meu vizinho de apartamento, não há porteiros ou faxineiras no prédio... não fosse as compras semanais no supermercado da esquina, a porta permaneceria fechada sempre!

Mal deixo o janelo e ouço um bater-de-porta. Num impulso impensado, abro-a e exclamo: - É você Nicanor?!? - Imediatamente me reprimo, envergonhado de ter chamado o nome de Nicanor, e ao mesmo tempo aliviado de não ser ninguém; ninguém presenciara minha ansiedade e expectativa, ambas frustradas.

Nicanor foi um grande amigo. Não saberia dizer se ainda está vivo. Nicanor fora um grande amigo até o dia em que minha arrogância o afastou de mim. Como não percebi antes e como convivi com isso dentro de mim por tantos anos, não saberia dizer... por muito tempo achei que Nicanor não fora leal e camarada comigo. Só 57 anos depois é que vim perceber o meu erro. Mas e agora?, me pergunto... sou uma pessoa amarga e arrependida, e o tempo provou que meus amigos não eram muitos; seja pelos interesses que mudaram com o tempo, ou pela minha falta de tato em lidar com eles; tinha particular dificuldade em tratar de assuntos que não me interessavam. Tudo o que não acordava com as minhas opiniões eu dava um jeito de postergar, pospor aos meus próprios assuntos. O tempo, insaciável, consumiu rapidamente minha juventude, que outrora pensara ser eterna; mostrou-se também cruel por não poder ser retocado, e os frutos plantados no passado foram invariavelmente colhidos no futuro, mesmo que apodrecidos...

Ouço a campainha novamente! Transtornado pelas lembranças, escancaro a porta aos prantos, soluçando o nome do meu ex-melhor amigo, "Nicanor, Nicanor, me perdoe Nicanor, eu era jovem e não sabia o que fazia..." Mas não havia ninguém à porta. É praga do Nicanor, pensei. Praga por eu não ter feito nada para remendar o erro... após 57 anos! O que poderia fazer? É o que sempre me digo... o que poderia fazer?

Nas últimas semanas uma angústia me atormenta... um sonho, sempre igual, com o jovem Nicanor, no auge de seus vinte anos... No sonho, Nicanor está me encarando com tristeza, uma tristeza deslocada, não associada a nenhuma notícia - no sonho eu sei que não há notícias para se entristecer - e pergunto "o que foi Nicanor? Que tristeza é essa?", e ele olha para seu próprio corpo, passa a mão em seu rosto liso, pele tenra, e diz: "eu remocei... e você ainda continua o mesmo velho de sempre...". Este é o momento em que acordo. E vinha sendo assim por dias e dias, mas esta semana os sonhos começaram a se alongar, progressivamente.

No primeiro dia, ao invés de acordar me observo, e percebo que não sou o jovem que era na época; sou o velho de hoje! O espanto e a incredulidade me distraem um pouco da tristeza de Nicanor, mas logo me apercebo dele novamente, pois sua tristeza é contagiante... tento falar com Nicanor mas minhas palavras não saem, e acordo! No dia seguinte, após me aperceber de Nicanor, sinto que ele está numa queda-sem-fim de tristeza. Quero gritar, tentar ajudá-lo a não se entristecer mais, mas não tenho voz, e quanto mais triste Nicanor se torna, mais ele remoça, e eu, proporcionalmente me avelho! E este sonho se repete com prolongações cronológicas; Nicanor passa de adolescente a garoto, de garoto a menino, bebê, e finalmente se transforma num feto... e eu, querendo gritar para que Nicanor me perdoe, desesperadamente me decrepito, encolho, definho, a pele, a carne, os músculos... todo o meu tecido se esvai, menos a consciência... que a tudo observa em detalhes.

E nesta hora quero acordar... procuro me mexer, mas meus músculos não estão mais lá... só os ossos, e não posso mover meus ossos sem músculos, nervos e tendões ligados a eles. Gritar também não consigo, não há mais carne, cordas vocais, não há mais pulsação... só a consciência, viva, cruelmente viva e sabedora de tudo, ciente de todos os detalhes, testemunha de toda a minha vida, que me passa feito um filme, que bem sei nunca acabará...

Já era tarde demais quando morri.