Woman III by Willem de Kooning |
– Señorita Joana, Maria Joana, quiera dirigirse a la puerta de embarque inmediatamente! Señorita Maria Joana...”.
Eu costumava acreditar que os nomes não nos diziam nada até que metêssemos um conteúdo dentro deles, mas no caso de Maria Joana, me enganara. Ao vê-la entrar pela porta da aeronave pude perceber que já a conhecia, sem nunca tê-la visto. Trazia consigo um rosto lânguido, quase lascivo. O cabelo escorrido, a modelar-lhe o pescoço, voluptuoso, os ombros largos mas protelados... Maria Joana tinha, em seu conjunto, uma beleza feia. O nome parecia-lhe vestir como a uma luva. Meu pai uma vez dissera-me para não acreditar em alguém sem sobrenome. Particularmente eu nunca precisara por à prova sua teoria. Esta seria uma boa oportunidade.
O vôo Madrid-Lisboa não demora nada ao relógio. Sai-se de Madrid num determinado horário e chega-se em Lisboa na mesma hora. Calhou-me ficar ao lado de Maria Joana na esteira de bagagens (só depois vim a saber que ela dera um jeito para isto).
– Curioso nome, o seu, Maria Joana...” arrisquei. “Portuguesa?” disse, com carregado sotaque castelhano, tomando o cuidado de pronunciar redondamente as letras “a” e “o” ao final de Maria e em Joana, para não dar a impressão de falar marihuana, conhecida substância extraída das folhas do cânhamo, e que parecia nada ter a ver com ela. Sempre uso este artifício, o de falar castelhano com portugueses. É um estigma que tenho. Sinto desdém, a princípio, dos portugueses a nós brasileiros.
Maria Joana lançou-me um olhar em brasa, quase esfumaçado, para manter a metáfora, e disse-me ser brasileira, “como você”, completou, em bom português do Brasil, virando-se para a esteira. Senti-me como um cinzeiro, um monte de cinzas de fumo, pontas de cigarros e charutos usados. E quando estava quase a jogar-me ao lixo e assim deixar mais espaço a outras cinzas, Maria Joana estende-me a mão e diz, num sorriso cristalino:
– E você, como se chama?
– Bonfim, respondi, apertando suavemente sua mão – macia, por sinal. Emendei, “Como sabes que sou brasileiro?”, mal disfarçando meu galanteio.
– Estava atrás de você no check-in. Reparei o seu passaporte verde...
– Não só o passaporte brasileiro é verde – disse, triunfante, querendo crer que soava intelectual – “O de Andorra, por exemplo, também o é”, mas inesperadamente, Maria Joana me diz que o passaporte de Andorra deixou de ser verde em 1968. Desconversei.
Não tive tempo para remediar o silêncio gigântico que se instalou entre nós, pois logo avistei minha mala na esteira, porém, antes que pudesse alcançá-la, Maria Joana atirou-se à minha frente e apanhou-a, dizendo “Esta é a minha”. Pedi-lhe desculpas e disse que se enganara, pois aquela mala era minha. Maria Joana agarrou-se veementemente à mala, afirmando em tom quase marcial ser aquela mala a dela.
– Ora, ora, vejamos então os recibos de embarque – disse, enquanto buscava em meus bolsos, tentando impor alguma sensatez ao meu desequilíbrio já estuoso. Maria Joana não se mexeu em favor de procurar seu recibo, e repentinamente atirou-se novamente à esteira, em direção à outra mala:
– Esta é a sua – precipitou-se ela. Confesso ter ficado confuso, pois ambas as malas eram exatamente iguais, até mesmo nas fitinhas Lembrança do Senhor do Bom-Fim, uma vermelha e outra branca, amarradas na alça lateral. E não pensem que grafo Bom-Fim apenas – mas também – para diferenciar do meu nome. Bom-Fim é assim grafado por tratar-se da figuração de Jesus Cristo, na qual é adorado na visão de sua morte. E cá pra nós, morrer não me parece, por fim, um bom fim... enfim!
– Que estranha coincidência, não? – falei, ainda incrédulo, mas visivelmente perturbado. Maria Joana não largava da mala, com o mesmo olhar alucinado dos paranóicos, o que, confesso, me assustou. “Bem, temo que precisemos conferir os recibos, já que as malas são exatamente iguais... e pelo que posso ver, senhorita Maria Joana – fiz questão de falar seu nome completo, a ver se me dava mais confiança à palavra, já um pouco tremebunda pelo nervoismo, mas o que acabou por acontecer foi destacar ainda mais nos ouvidos os dois nomes, sem sobrenome – o meu recibo não condiz com o número desta mala, portanto, a senhorita está em posse da minha e eu da vossa. Sendo assim se me dá licença...”, mas Maria Joana reagiu gravemente:
– Não, não, não há engano, não. Esta é a minha, tenho certeza, confie em mim!
A múltipla negação me soou um exagero, com a clara intenção de me convencer, apenas. Inevitavelmente as palavras de meu pai me vieram à cabeça: “Nunca confie em alguém que não tenha um sobrenome”. Definitivamente, Maria era um nome, assim como Joana. Nunca se ouvira falar de uma Família Joana. Nem soaria bem! Alguém pode imaginar algo como “Os Joana deram ontem uma festa em homenagem ao matrimônio de sua filha Maria”?, não funciona! Definitivamente Maria Joana era uma pessoa sem sobrenome.
– Como posso confiar em ti se não tens um sobrenome? – pensei alto, de sobressalto. Muito alto! Maria Joana olhou-me com tristeza, afroxou o aperto com que segurava a mala – mas ainda assim não a largou.
– Abra a mala, disse-me, já não tão autoritária.
– Não posso fazer isso, é a sua mala, além do mais...
– Abra-a, estou te dizendo, confira o conteúdo.
Já movido pelo arrependimento daquilo que desadvertidamente dissera, abri, hesitante, a mala etiquetada com o número de recibo que não era o meu, com medo do que pudesse encontrar. Vagarosamente, polegada por polegada, deslizei o zíper, até avistar um iPod, como o meu. Mais um pouco e pude ver um fone de ouvido como o meu, e também um necessaire como o meu. E depois de encontrar também um livro como o que eu estava lendo, escancaro confiante a mala toda, e comprovo que tudo o que lá havia era meu, e portanto, a mala minha. Ao me voltar para Maria Joana só pude vê-la já pelas costas. Fiquei ali, por alguns instantes, suficientes para que tudo se deslindasse, como num filme noir onde toda a trama é resolvida no minuto final, repentina e arrematadoramente, deixando todos atônitos.
Só me pergunto como e por que Maria Joana trocara de malas comigo no momento do check-in...
Pois é, meu pai tinha razão.