um conto de natal


Já passava das 10 da manhã quando ele chegou no escritório. Não sentia-se vigiado por isso, tampouco pressionado de maneira alguma. Sentia-se, como há tempos não se sentia, aliviado! Talvez o resultado dos 90 minutos de academia logo pela manhã, talvez o resultado do bom trabalho que vem fazendo ultimamente e que vem lhe rendendo elogios de clientes, parceiros e associados, ou talvez apenas o Espírito Natalino...

– Não! Não o espírito natalino - pensou. Esta seria a última coisa à qual ele atribuiria seu bem-estar. Não acreditava nestas coisas. Perdera muito cedo a inocência do natal, e isso havia lhe deixado um azedume no espírito. Aconteceu quando tinha 5 anos, num dos jantares de natal que seus pais costumavam oferecer para a família. Ao precipitar-se para a cozinha, constatou que o Papai-Noel que há pouco distribuíra presentes e gargalhadas, não passava do seu obeso tio, que agora estava sentado à mesa de jantar com a barba ao colo, comendo e bebendo compulsivamente. E o embaraço dele ao tentar recolocar a barba, a boca cheia de comida, babando o vinho, e seus pais querendo afastá-lo da cozinha... depois daquele ano, nunca mais houve Papai Noel, nem renas nem duendes... o natal deixara de ser aquele algo mágico e passara a ser apenas mais uma noite com um jantar caprichado, falsas mensagens de paz e esperança e algumas porcarias trocadas entre as pessoas.

Era um dia tranquilo, uma sexta-feira tranquila, clara, fria e ensolarada. Não havia muitas requisições, mais nenhuma exposição agendada para este ano, praticamente não havia nada para ele fazer. E como só decidira se feriar nesta semana, pegou a oportunidade para dedicar algum tempo ao lazer remunerado... Avisou aos colegas que iria ao banco. Desceu as escadas, acenou ao porteiro, de maneira que fosse visto saindo do escritório. Entrou no carro e deu uma volta no estacionamento, parando o carro atrás de uma moita. Vestiu sua roupa de motoqueiro (ele nunca tivera moto), sua balaclava, armou-se do seu pé-de-cabra e dirigiu-se até a porta dos fundos do depósito.

Ele conhecia os seguranças. Sabia que se revesavam durante o almoço, e também sabia que Pedro estaria cobrindo a carga horária de João, que tirara a sexta-feira de folga, por conta própria. Pedro comeria um lanche na guarita mesmo. Ele sabia que Pedro teria que ir comprar o lanche na cantina, e para isso se ausentaria por não mais do que 4 minutos... A hora era agora.

Forçou a porta com o pé-de-cabra com o cuidado de não arrebentar a fechadura, de maneira que pudesse fechar novamente por dentro. Aproximou-se dos quadros. Embora pressionado pelo tempo, escolheu-os cuidadosamente: "O Lavrador de Café", obra de 1939 de Cândido Portinari, e "O Retrato de Suzanne Bloch", um Pablo Picasso de 1904. Retirou os quadros da moldura com um pequeno mas bem afiado estilete, pois com a moldura não seria possível sair pela porta da frente. O Picasso media 65x54 centímetros e o Portinari 100x81 centímetros.

Três minutos após sua entrada, saia tranquilamente pela porta da frente do depósito. Sabia que, a não ser pelo vigia, ali não eram caminhos de ninguém. Um minuto foi o suficiente para chegar ao carro sem ser visto. Do carro pode ver o vigia voltando com seu lanche na mão. Colocou os quadros no porta-malas, tirou a roupa de motoqueiro e a balaclava, entrou no carro e voltou para o estacionamento. Estacionou calmamente, subiu ao escritório e, ao ser encarado com cara de espanto pelos colegas, disse:

- Esqueci meu cartão! Abre a gaveta, pega o cartão e sai novamente, avisa que não voltará mais hoje, e deseja a todos um ÓTIMO NATAL e um ANO NOVO CHEIO DE PAZ E PROSPERIDADE!

No caminho de casa parou no Shopping Centre para comprar uma barba postiça, o último adereço que lhe faltava: seria o palhaço para os sobrinhos naquele natal...