o anti-panegírico

Handmade oil painting reproduction of The Murder, a painting by Paul Cezanne.
Bem que eu tentei dar profundidade a isto tudo... mas foi em vão. Tentei ser bom, correto, e ao menos isso penso que consegui, mas agora me questiono se realmente valeu a pena todo este esforço. Ser bom é um esforço. Ao menos tentar ser bom exigiu muito esforço.

Não vou aborrecê-los com pormenores da minha infância, pois realmente não valem à pena – se é que uma pena tem algum valor. Dela posso dizer que foi como qualquer outra infância, normal, ou seja, não fui abusado tampouco espancado. Tive uma educação religiosa baseada na inexpressiva doutrina católica – o que resultou em agnosticismo. Frequentei a escola normal e razoavelmente, e tive paqueras que não deram em nada. Fumei cigarros, fumei maconha, tomei porres homéricos, tive alucinações coletivas e duradouras. Tudo em nome de mim mesmo.

Tudo começou, digamos, quando me tornei gente. E isso só se dá muito tarde na vida, pois sempre se tem um impressão errada deste estado: primeiro lá pelos 14 anos, depois ao redor dos 18, novamente aos 24, 25, e depois aos 30. Só quando se chega aos 40 é que entendemos o que é a vida. É preciso começar a morre para se viver. Então passei a ser gente. Daí pra frente, as coisas só pioraram, e todos os meus sonhos de não-gente foram por água à baixo, pouco a pouco. Trabalhava para o sustento, sufocava minhas vontades, submetendo-me a vontades que não eram as minhas, privava-me de horas preciosas ao qual eu não dava a real impotância. Constitui uma família, pois me fora imposto que assim o tinha que ser. Traí minha esposa não por amor, mas por convenção. Separei-me, deixei filhos para trás, casei-me de novo, cuidei de filhos que não eram meus, não os amei como deveria, nem amei minha segunda esposa como pensei que amaria, e acabei por traindo-a também, novamente não por amor, mas por um vazio que sempre carreguei comigo e que não se resume em amor tampouco sexo. Fiz outros filhos, oficiais e clandestinos, que acabei não dando a atenção devida, ou que eu agora acho que seria devida, e levei a vida.

É verdade que no meio disso tudo tentei dar certa graça ao tempo que passava, fazendo coisas que pareciam mais nobres apenas por não serem impostas, cobradas ou esperadas, como tocar numa banda de jazz, escrever alguns contos, um ou dois romances e umas tantas poesias, além de me engajar em projetos sociais que nunca deram certo, me infiltrar na política – de esquerda, é claro – para demonstrar que estava tentando mudar alguma coisa do sistema que me oprimia, mas tudo foi em vão.

No quesito tentativa, não tenho do que reclamar, pois tentei bastante. No quesito sucesso, sou só fracassos. Por mais que eu tenha tentado dar profundidade à minha existência acabava me propagando apenas em periferias, abrangências limítrofes, ciscedentes, muito aquém donde queria chegar.

O que mais posso dizer sem levá-los ao aborrecimento? O porquê disso tudo? Claro... o porquê.

Dias antes do ocorrido, enquanto fazia compras no supermercado, um carro com quatro pessoas se aproximou de mim e estas pessoas me encararam como ninguém... demoradamente. Achei estranho, encarei-os de volta, mas eles não se intimidaram. Eu me intimidei. Passados aqueles 3 ou 4 segundos de encaração me intimidei, mas pude perceber de rabo-de-olho que meus observadores não se intimidaram. No dia anterior ouvi na rádio local que um jovem havia sido morto a tiros numa casa nas redondezas, e a polícia concluiu que provavelmente fora um engano, pois a vítima não tinha nenhum antecedente criminal. Isto me fez pensar naquele carro...

Embora goste e me interesse por línguas, não falo polonês. Posso identificar a língua... e aquelas pessoas se dirigiram a mim em polonês, disso eu tenho certeza! Outra certeza que tenho é de que eles se enganaram. Foi um engano! Falaram coisas em polonês, gritaram em polonês, apontaram-me uma arma polonesa, e dispararam tiros poloneses.

Certamente mataram o cara errado.